a morte de gregor samsa
stéfanie medeiros
Ariel, como em todos os outros dias, acordou querendo não estar acordada. Apertou o botão da soneca três vezes até se convencer de que, sim, tinha que levantar.
A única parte aconchegante de seu quarto era a cama. O resto do cômodo estava um caos de caixas de papelão, roupas, sapatos, livros espalhados entre a mesa, a estante e o chão, cremes e cosméticos desordenados pelo banheiro. Em resumo, o quarto de alguém que havia chegado há pouco tempo. Mas, tratando-se de Ariel, sabemos que ela já estava acomodada há três semanas, sem ter se dado o trabalho de organizar seus pertences. Ainda embaixo do edredom, mesmo com os perfeitos 28 graus lá fora, Ariel olhava em volta, as sobrancelhas franzidas, levemente confusa, talvez um pouco assustada. Começou a olhar em volta com mais urgência, agora querendo levantar, mas sem ter a coragem para tanto. Mas afinal de contas... -Que diabos é essa voz? II Segurando uma raquete de tênis em uma das mãos e carregando o sentimento de impotência por todo o corpo, Ariel olhava em volta, apreensiva. -É sério, muito engraçada a brincadeira, mas já deu! Pode aparecer, seja lá quem for! Mas ninguém apareceria. Ariel estava começando a questionar: Será que estou acordada? Será que isso é um sonho lúcido, daqueles em que a pessoa sabe que está sonhando? Mas eu não sei se estou sonhando ou não. Em que universo é real uma pessoa acordar com um narrador? Talvez naquele filme... mas aqui? -Em nenhum! Isso não é normal. Se for você, Helena, saiba que isso não tem graça! No fundo, Ariel sabia que não era Helena. A voz era diferente. E no mais, como a amiga leria seus pensamentos com tanta propriedade? Respirando fundo três vezes, esperando que partículas de coragem atravessassem seus pulmões e atingisse o seu sangue, Ariel deu mais um passo. Alguma coisa lhe dizia para checar o banheiro, embora seu medo de sair sangrando daquele cubículo fosse grande. Mais um passo, mais outro, o ranger da porta, o olhar escaneando cada centímetro a frente. Então, o grito, a raquete no chão, o dedinho na quina da porta, o passo descoordenado para trás, a queda. Não era um narrador, não era Helena, não era nem sequer uma pessoa. Apesar do pânico, Ariel não pode deixar de fazer a seguinte associação: um inseto monstruoso, ventre marrom, dividido por nervuras arqueadas, antenas que movimentavam-se furiosamente, numerosas pernas... -Não vai me dizer que você é realmente o Gregor Samsa. É claro que eu não diria tal coisa. Meu tamanho era o mesmo de uma barata comum, tudo em mim era dolorosamente ordinário. -Exceto a capacidade de falar. Exceto a capacidade de narrar. Ariel, lembrando-se de súbito do seu pavor, esqueceu-se da dor no dedinho, levantou-se com rapidez e bateu a porta antes que aquela monstruosidade saísse voando. -Isso só pode ser um sonho. Não era um sonho. III O relógio marcava nove horas. Ariel já estava atrasada para a aula. Seu mindinho do pé esquerdo sangrava e estava vermelho. Como é que uma barata falante chamada Gregor Samsa de repente acordou narrando sua vida?, perguntou-se Ariel. Mas a verdade é que a barata já estava acordada há horas e não tinha nome. No entanto, somente o pensamento da palavra “barata” causava-lhe arrepios, então de agora em diante aquele ser mutante seria chamado de Gregor Samsa, Gregor Samsa, Gregor Samsa. Nove e vinte. O atraso era irremediável. A primeira parte da aula já estava perdida. -Se você fosse embora, eu conseguiria chegar na segunda parte e assinar a lista. Então Ariel franziu a testa, como que saindo de seu corpo e olhando para si mesma, encontrou-se em uma situação ridícula. Estaria mesmo ela negociando com uma... com um Gregor Samsa? -Meu Deus. Meu Deus, de fato. Ariel sabia muito bem que eu, Gregor, não iria a lugar algum. Culpou-se também por não ter comprado o veneno na primeira semana. Como pode ser tão desprevenida? Ah, quem precisa de banho, não é mesmo? -Eu preciso, mas parece que não tenho muita opção! E com isto, Ariel ignorou seu dedinho sangrento e dirigiu-se ao guarda-roupas, onde várias caixas estavam espremidas. Onde é que estava a caixas de camiseta? -Humm, onde é que estava? No topo da montanha de caixas. -Ah, sim. Ariel ficou na ponta dos pés para alcançar a caixa. Apesar do tamanho, ela sabia que a caixa estava leve, com algumas poucas camisetas amassadas no interior. O que ela havia esquecido, no entanto, é que a poeira acumulada já era abundante a esta altura. Coberta de pó, a caixa aberta caída sob seus pés, Ariel colocou as duas mãos na cabeça, irritada, furiosa. Quem dera estivesse em casa, em sua verdadeira casa, assim alguém resolveria seu problema em menos de cinco minutos. Mas este caos era seu lar agora e não havia ninguém além de si mesma para resolver qualquer obstáculo que aparecesse em sua frente. Mesmo um medo infantil de... -Com licença, mas fobia é uma doença! Exceto que Ariel não tinha fobia de baratas. Tinha um medo socialmente inserido em sua personalidade, que, no entanto, não impedia diálogos, pequenos surtos de raiva e, no momento, um olhar assassino com uma resolução renovada: Gregor Samsa tinha de morrer. -Gregor Samsa vai morrer. Era isto que Ariel pensava. -Não, não. Era isto que Ariel sabia. IV Quantas coisas cabem em um conto? Quantas almas mortas enterradas nos livros espalhados entre a mesa, a estante e o chão estão presentes nas pequenas linhas? Embaixo de uma pilha de obras, com as páginas manchadas com respingos de café, Ariel avistou seu exemplar de “a metamorfose”. A verdade é que nunca havia lido aquele livro. Comprou-o na livraria, colocou embaixo do braço e foi até um café. Pediu um espresso e ficou mexendo no celular o tempo inteiro enquanto o livro, fechado, marcava presença na mesa. Por um descuido, o café caiu, manchando parte das páginas. Quando reconta esta história, Ariel também omite o fato de que o café era no meio de um shopping center. Nada romântico, nada poético. -Pode filosofar o quanto quiser, isso vai acontecer. “Isso”. A morte. Não era ela a principal causa de todas as divagações sobre a vida? -Não. Mas na verdade era. Ariel tomou fôlego mais vezes do que conseguia contar. Que arrependimento era não ter comprado o veneno! Mas e... -E se eu for comprar o veneno agora? Coberta de poeira, lá fora não estava nem frio para disfarçar o pijama com um sobretudo. Ariel, no entanto, estava decidida. A mão enfraquecia toda vez que fazia menção de aproximar-se do banheiro. Em duas tentativas, a raquete escorregou. E, no mais, teria que jogar a raquete fora depois que meus pedaços estivessem grudados na rede de acrílico. -Argh. De fato, argh. Uma morte dolorosa, porém rápida e digna. Mas não era isso que me esperava. A covardia já havia se apossado de Ariel, que, de pijamas e coberta de poeira, saiu do quarto resoluta, deixando a pobre barata falando sozinha, pensando que o fim estava próximo. V O veneno estava em mãos. A coragem, porém, teimava em não aparecer. -Você podia simplesmente ir embora e nenhum de nós precisava passar por isto. Ah, fosse a vida tão simples! Eu podia ir embora, decerto. Mas não demoraria que Gregor Samsa voltasse, se não eu, um outro qualquer, menos gentil, mais ousado e sem medo de voar. Porque a verdade é que o medo não cobre apenas os seus ossos, mas preenche cada fibra do meu exoesqueleto. -Pelo amor de Deus... Ariel fechou os olhos, segurando a lata de veneno com força. Ela então destravou o lacre e apertou o botão. A nuvem de veneno saiu da lata, impiedosa e potente. Tudo o que faltava agora era a coragem de abrir a porta. Um rangido incômodo depois e lá estava ela. -Você pode ir embora. Eu podia ir embora, mas não mexi um centímetro do meu corpo. Minhas antenas estavam frenéticas, a presença de Ariel palpável. Da soleira da porta, ela olhou para mim. Estávamos frente a frente, o coração de Ariel acelerado. -Eu não quero fazer isso. Eu não quero que você faça, mas algumas coisas são como são. Temos escolhas, mas muitas vezes escolhemos o que já estava escolhido por nós. Ariel deu um passo para a frente, com medo de que eu fosse abrir as asas e tornar aquela situação pior do que já era. Ela precisava chegar mais perto, mais dois ou três passos. Não me movi. Queria ela estar em casa, onde não precisaria resolver esse problema pessoalmente. Mais um passo. Eu era um problema? Era apenas uma barata, dificilmente uma monstruosidade, sem possibilidade nenhuma de machucá-la. Mais um passo. Agora era o suficiente. A narração chegava ao fim e, com a nuvem de veneno, o fim tornava-se cada vez mais visível, palpável. Eu não era um problema. Eu podia ir embora, mas Gregor Samsa voltaria, fosse ele eu ou outro. Eu não era um problema, nem um obstáculo... O veneno atingiu meu corpo, senti o impacto da nuvem... e agora não podia mais saber onde estava Ariel, onde eu estava, caído, contorcendo, por quanto tempo? Não lembro quanto tempo, não sei. Ariel estava em algum lugar, eu não sabia, mas sentia que ela olhava. Eu podia ter ido embora, podia ter morrido mais rápido com uma chinelada, mas a coragem não se apresenta por inteiro, às vezes nem pela metade. Eu não era um problema, eu não era um problema, eu não era um problema. Era um rito de passagem. |
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